A internet é pior babá eletrônica do que foi a televisão em outros tempos. A partir do momento em que a mobilidade permitiu que cada integrante de uma família usasse uma tela para assistir ou jogar o que bem entendesse, houve a individualização de um processo que antes era coletivo. Dar um tablet para uma criança ficar quieta pode ser abrir a porta para um estado de passividade. “A infância é um momento de estruturação em que o cérebro, o corpo e o psiquismo estão em formação. As experiências de vida são decisivas para quem a criança será no futuro, e por isso é tão importante pensar que lugar se dá para a ela em casa, na escola e na sociedade”, afirma a psicanalista Julieta Jerusalinsky, professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP) e especialista em primeira infância e desenvolvimento infantil.
Precisamos pensar em como arrumar tempo e lugar para transmitir à criança aquilo que achamos que é decisivo para que ela se torne o adulto de amanhã. Dá muito trabalho, é verdade. Mas ao conviver com uma criança acabamos inventando brincadeiras e evocando passagens da nossa própria infância que, se não fosse pela criança, cairiam no esquecimento. Assim elas acabam por nos fazer um favor aos nos tirar do automatismo da vida adulta e nos convidar a construir uma brincadeira entre gerações. Costuma ser surpreendente o que pode acontecer quando desligamos as telas e abrimos lugar para o convívio.
Há 20 anos, se discutia quanto tempo de televisão uma criança poderia assistir. Mas a televisão implicava que todos assistissem juntos, o que permitia comentários. Com uma tela individual, não há mais a conversa. A programação da televisão terminava; a internet não termina. Os pais já não sabem mais o que as crianças estão vendo, a não ser as muito pequenininhas. Outro aspecto é a passividade. Uma criança que brinca está em atividade, construindo uma história. A criança que está na frente da tela é uma espectadora. Não se trata de demonizar as novas tecnologias, mas de considerar que uso fazemos delas.
As intoxicações eletrônicas não começam quando se larga o celular na mão de uma criança. A questão é como nós, adultos, estamos usando esses aparelhos. Com a internet móvel, não temos mais divisão entre o tempo de trabalho e de lazer. Um pai chega em casa e senta para brincar com seu filho, enquanto olha para as mensagens no celular. Ao ficarmos o tempo inteiro disponíveis aos que não estão ali, perdemos a importância da presença dos que estão ali conosco.
Para as crianças, que dependem radicalmente do lugar que os pais lhes dão, isso tem consequências muito mais contundentes. Dizer “não” não basta. Em primeiro lugar é preciso pensar o que se propõe à criança. Em segundo lugar é preciso considerar o que o próprio adulto faz. Muitas vezes, as crianças convivem com um adulto que está de corpo presente, mas psiquicamente ausente olhando para uma janela virtual. As crianças não aprendem simplesmente pelo que os adultos lhes dizem, mas pelo cruzamento disso com o que eles mesmo fazem. Há bebês que, siderados por eletrônicos, podem acabar caindo em diagnósticos de transtorno do espectro do autismo. Não estou dizendo que o autismo é causado pelos eletrônicos, mas que muitas crianças com intoxicações eletrônicas são colocadas nessa valeta diagnóstica, ou em outra grande valeta diagnóstica da contemporaneidade que é o déficit de atenção e hiperatividade.
Fonte:
JULIETA JERUSALINSKY é psicanalista, mestre e doutora em psicologia clínica, professora dos cursos de especialização em Teoria Psicanalítica (COGEAE PUC-SP) e Estimulação Precoce: clínica transdisciplinar do bebê (do Instituto Travessias da Infância – Centro de Estudos Lydia Coriat-SP), membro da Clínica Interdisciplinar Mauro Spinelli e da REDE-BEBÊ Revista Gama/ TAGS: Infância – Parentalidade – Psicologia – Tecnologia